terça-feira, 2 de abril de 2013

O Passarinho Engaiolado


                               

Dentro de uma linda gaiola vivia um passarinho. Sua vida era segura e tranquila. Tranquilidade e segurança: coisas que todos desejam. Barco ancorado não naufraga. Avião em hangar não cai. Para viver em segurança as pessoas constroem gaiolas e passam a viver dentro delas. Dentro das gaiolas não há perigos. Só há monotonia. Todo dia a mesma coisa. Tudo o que acontece todo dia do mesmo jeito é chato. Esse é o preço da segurança: a chatice. Dentro da gaiola não há muito que fazer, seja ela feita com arames de ferro ou com deveres. Os sonhos de aventuras selvagens aparecem, mas, logo que veem os arames, morrem.
Alguns, malvados, furam os olhos dos pássaros engaiolados. Dizem que pássaro de olho furado canta mais bonito. Talvez, cegos, eles se esqueçam de que estão presos numa gaiola. Mas, mesmo se não estivessem, de que lhes adiantaria ter asas para voar se não têm olhos para ver? Sua cegueira é a sua gaiola. Há muitas pessoas assim: parecem ter olhos normais, parecem ver tudo. Na verdade nada veem, a não ser o seu mundinho. Sua cegueira é a sua gaiola.
O nosso amigo, passarinho engaiolado, bem se lembrava do dia em que, enganado pelo alpiste tentador, saboroso, entrou no alçapão. Alçapões são assim: têm sempre uma coisa apetitosa dentro. Mas basta que a coisa apetitosa seja bicada para que a porta se feche para sempre, até que a morte a abra... Na porta da gaiola estava escrita uma frase famosa, de um poeta famoso, Dante Alighieri: “Deixai toda a esperança, vós que entrais.” Mas passarinho não entende nem escrita, nem linguagem de gente.
Há um poema famoso, de Guerra Junqueiro, sobre o melro, um pássaro que canta risadas de cristal. Um padre velho e ranzinza tinha raiva do melro. Ele comia as sementes que o padre semeava. Um dia, o padre encontra o ninho do melro num arbusto. Estava cheio de filhotinhos. O padre, para se vingar da mãe, engaiola os filhotinhos. A mãe, vendo seus filhos engaiolados, e sem forças para abrir a portinhola de ferro, traz no seu bico um galho de veneno. “Meus filhos, a existência é boa só quando é livre, ela disse. “A liberdade é a lei”. Prende-se a asa, mas a alma voa... Ó filhos, voemos pelo azul!... Comei!
É certo que a mãe do nosso passarinho nunca lera o poema de Guerra Junqueiro porque, ao ver seu filho engaiolado, lhe disse: “Finalmente minhas orações foram respondidas”. Você está seguro, pelo resto de sua vida. Nada há a temer. Nenhum gato o comerá. Comida não lhe faltará. Você estará sempre tranquilo. Se você ficar deprimido, cante. Quem canta seus males espanta. Veja: todos os pássaros engaiolados estão cantando! As palavras de sua mãe não o convenceram. Do seu pequeno espaço ele olhava os outros passarinhos. Os bem-te-vis atrás dos bichinhos; os sanhaços, entrando mamões adentro; os beija-flores, com seu mágico bater de asas; os urubus, em seus voos tranquilos na fundura do céu; as rolinhas, arrulhando, fazendo amor; as pombas, voando como flechas. Ele queria ser como os outros pássaros, livre... Ah! Se aquela maldita porta se abrisse... Isso era tudo o que ele desejava.
Pois não é que, para surpresa sua, um dia o seu dono esqueceu a porta da gaiola aberta? Ele poderia agora realizar todos os seus sonhos. Estava livre, livre, livre! Saiu. Voou para o galho mais próximo. Olhou para baixo. Puxa! Como era alto! Sentiu um pouco de tontura. Estava acostumado com o chão da gaiola, bem pertinho. Teve medo de cair. Agachou-se no galho, para ter mais firmeza. Viu outra árvore mais distante. Teve vontade de ir até lá. Perguntou-se se suas asas aguentariam. Elas não estavam acostumadas. O melhor seria não abusar, logo no primeiro dia. Agarrou-se mais firmemente ainda. Nesse momento um insetinho passou voando bem na frente do seu bico. Chegara a hora. Esticou o pescoço o mais que pôde, mas o insetinho não era bobo. Sumiu mostrando a língua.
Ei, você! Era uma passarinha. – Vamos voar juntos até o quintal do vizinho? Há uma linda pimenteira, carregadinha de pimentas vermelhas. Deliciosas. Só é preciso prestar atenção no gato que anda por lá... Só o nome gato já lhe deu um arrepio. Disse para a passarinha que não gostava de pimentas. A passarinha procurou outro companheiro. Ele preferiu ficar com fome. Chegou o fim da tarde e, com ele, a tristeza do crepúsculo. A noite se aproximava. Onde iria dormir? Lembrou-se do prego amigo, na parede da cozinha, onde a sua gaiola ficava dependurada. Teve saudades dele. Teria que dormir num galho de árvore, sem proteção. Gatos sobem em árvores? Eles enxergam no escuro? E era preciso não esquecer os gambás. E tinha que pensar nos meninos com os seus estilingues, no dia seguinte. Tremeu de medo. Nunca imaginara que a liberdade fosse tão complicada.
Somente podem gozar a liberdade aqueles que têm coragem. Ele não tinha. Teve saudades da gaiola. Voltou. Felizmente a porta ainda estava aberta. Entrou. Pulou para o poleiro. Adormeceu agradecido a Deus pela felicidade da gaiola. É muito mais simples não ser livre. Nesse momento chegou o dono. Vendo a porta aberta, disse: “Passarinho bobo! Não viu que a porta estava aberta. Deve estar meio cego. Pois passarinho de verdade não fica em gaiola. Gosta mesmo é de voar...”

Rubem Alves


                           

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